sábado, 2 de março de 2024

Joseph Roth

 Eu confesso que sou presa fácil do pensamento cínico segundo o qual a vilania humana é incontornável, portanto inculpável (não sei se uso adequadamente a ideia de cinismo; corrija-me por favor quem puder). Por isso acho especialmente espantoso que uma pessoa como Joseph Roth, que vivenciou os horrores da primeira guerra e, sendo judeu, os acontecimentos que precederam a segunda (morreu em 1939), que alguém assim escreva o que reproduzo abaixo, uma espécie de libelo contra o que chamo aqui de cinismo (ao  mesmo tempo uma declaração de consciência da altitude de sua literatura). Numa cena anterior ao excerto a seguir, o ordenança Onufrij oferece ao tenente Trotta (um janota) todas as suas suadas economias para que este salde suas dívidas de jogatina:

"O tenente lembrou-se daquela noite de outono na guarnição da cavalaria, na qual ouvira, às suas costas, os passos soantes e ritmados de Onufrij. E pensou nos livrinhos de humor militar, encadernados de verde, que lera na biblioteca do hospital. Estavam repletos de ordenanças comoventes, camponeses ingênuos com corações de ouro. E muito embora o tenente Trotta não tivesse nenhum gosto literário, e muito embora, se por acaso ouvisse a palavra literatura, fosse capaz apenas de pensar na tragédia Zriny, de Theodor Körner, e em mais nada, criara uma certa aversão inconsciente à delicadeza melancólica daqueles livrinhos e às suas personagens com corações de ouro. O tenente Trotta não tinha suficiente experiência para saber que, também no mundo real, existem rapazes camponeses ingênuos de corações nobres, e que os livros ruins contam muitas verdades do mundo real, só que as contam mal. Ele era, ainda, um homem inexperiente, o tenente Trotta.".

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

das pequenas coincidências e dos finais felizes


 No dia em que completava dezoito anos, ao abrir a geladeira da adega aonde fora apanhar mais bebida para a festa que rolava no andar superior, uma pequena corrente elétrica coincidiu com uma pequena e até então desconhecida disfunção de seu músculo cardíaco. Quando a encontraram, desfalecida, o tio, que coincidentemente era médico e lá estava justo para a comemoração do aniversário, empenhou toda a sua ciência e sua ternura para reanimá-la. Mas, era já tarde demais e o vasto porvir congelou-se para ela em estado de infinitas possibilidades, restando o coração impoluto, todas as ilusões preservadas.

sábado, 28 de janeiro de 2023

uma irmã



Laços de sangue não garantem parentesco espiritual, é sabido; irmãos podem ser e frequentemente são tão diferentes entre si quanto são de completos estranhos, ainda que a ascendência comum e a convivência na infância e juventude determinem  relações de grande afeto. Dos meus quatro irmãos (um irmão e três irmãs) posso dizer que fosse mais aparentada de uma das irmãs, morta há muito tempo, ela então com 34 anos e eu com 20, de modo que não tivemos muita oportunidade de desfrutar da proximidade de nossos pontos de observação do mundo, mesmo porque ela já tinha aprendido quase tudo e comido o pão que o diabo amassou, enquanto eu era ainda uma completa idiota. 

Por outro lado, é fascinante que se possa conhecer na literatura gente - real ou ficcional - tão parecida com a gente mesma. Minha primeira experiência desse tipo deu-se quando conheci Paulo Honório, o coronel assassino personagem do romance São Bernardo; identifiquei-me de cara com essa criatura e desenvolvi por ela o que por mim mesma era uma mistura de meio nojo e forte autocomiseração. Mais tarde, quando li Infância e Memórias do Cárcere, concluí que eu e Paulo Honório tínhamos um terceiro irmão bastante afinado, o criador mesmo, Graciliano. 

Das minhas experiências de conhecer irmãos pela literatura, nada se comparou até agora à que tive quando li, muito recentemente, "As pequenas virtudes" da Natália Ginzburg: deu-me vontade de sair mostrando às pessoas na rua: "olha só, podia ser minha avó, viveu e morreu do outro lado do mundo, mas é minha irmã, verdadeiramente minha irmã, e de algum ponto do universo segue falando comigo".

domingo, 30 de outubro de 2022

"Amar"


"Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer, amar e malamar,

amar, desamar, amar?,

sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal, senão

rodar também, e amar?

amar o que o mar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o áspero,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho,

e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,

e na secura nossa, amar a água implícita, 

e o beijo tácito, e a sede infinita."


Carlos Drummond de Andrade


sábado, 14 de maio de 2022

"a guerra não tem rosto de mulher"


 "Antes, achava que sobreviver ao sofrimento deixava uma pessoa mais livre, que ela pertencia então apenas a si mesma. Que sua própria memória a defendia. Naquele momento estava descobrindo que não, nem sempre. Muitas vezes esse conhecimento, e até um conhecimento superior (que não acontece na vida costumeira), existe separadamente, como uma reserva intangível ou como poeira de ouro em uma mina de várias camadas. É preciso passar muito tempo limpando uma rocha vazia, revirar juntos o vazio do cotidiano, para enfim uma coisa brilhar! Oferecer-nos um presente!"

Svetlana Aleksiévitch, (tradução do russo por Cecília Rosas) em "a guerra não tem rosto de mulher" (pg. 120)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

regresso ao pó

Em seus últimos dias não mais se sentia confortável nas maciezas que tinha pela casa; só queria estar  na terra, como se tivesse pressa de ser outra vez mineral. As orelhinhas ficavam frias, então ela aceitava que lhe amparássemos a cabeça com a almofada preferida.